Psico-Socializando por Henrique Weber

Salve o cinema

Um dia, eu descobri que não gostava de cinema. Estava eu num shopping com os meus amigos do ensino médio da escola, e todos iriam assistir o último lançamento de um filme hollywoodiano. Eu não queria, mas por insistência deles, eu fui. Logo no início, após os letreiros/ créditos iniciais, começou as famosas perseguições e explosões que todo filme de ação norte-americano tem. Não aguentei! Eu me levantei na mesma hora, pedi desculpas a eles e fui embora.

Acho que fiquei cinco minutos, foi um recorde! A partir dali, havia prometido pra mim mesmo, que não pisaria mais no cinema, que definitivamente eu não gostava da sétima arte. Podia parecer antipático ou esquisito, alguns poderiam pensar que eu deveria ser mais flexível, relaxar e aproveitar esta diversão que o filme oferece. Mas fazer o quê, eu não gostava destes filmes de tirar o fôlego, de explosões gratuitas, era algo que me irritava. Pois bem, se passaram meses, um dia eu entrei numa crise emocional na minha adolescência. Meu coração estava carregado com muita angústia, precisava chorar, deixar sofre um pouco, ficar por algum tempo sozinho, escondido.

Comecei a procurar um lugar que ninguém me encontrasse. E abri o jornal “Correio Braziliense”. Vi que no Cine Brasília estava passando uma Mostra do Cinema Espanhol, gratuitamente. Meu pensamento foi que eu não precisaria ir para este lugar para assistir um filme. Se eu não prestasse atenção, seria um lugar ideal para eu sumir por um tempinho. Fui!

O Cine Brasília é um templo! É um cinema estatal com sofás grandes, de couro, bem confortável, onde a pessoa senta e se afunda, o sofá  me engolia, era super-acolhedor. Sua câmara interna era espaçosa, alta, parecia uma igreja por dentro, a gente se sentia pequeno. Então, escolhi um lugar mais a frente e pro canto, que era para não esbarrar com ninguém, mas impossível foi ficar de frente para a tela e não olhar a história. Comecei a me envolver com o filme que me fez pensar... nos meus problemas, nos problemas sociais de outros jovens que nem eu. Saí dali com meu coração mais leve, foi como tirar tudo o que eu tinha no peito, expelir para fora. Foi uma ótima experiência. No outro dia, fui de novo, e no outro de novo. Logo peguei a programação do mês seguinte que era a Mostra do Cinema Independente do Mundo (que sorte a minha!), que também era gratuito. Vi filmes argentino, iugoslávio, grego, iraniano, e muitos outros, de todo canto do mundo. Foi fantástico, eu sempre sentei na mesma cadeira da primeira vez, parece que, desde o primeiro dia, eu me tornei cliente fiel. Eu estava apaixonado por cinema.

O cinema tem muitos gêneros. Este que acabei gostando é mais difícil de definir, de categorizar, mas podemos chamá-lo de cinema-arte. É um cinema autoral de diretor, que imprime a sua marca, que coloca a sua visão de mundo e constrói a sua maneira de retratar uma história. Contudo, é controverso isto, pois o cinema é uma indústria e ninguém faz o filme sozinho: temos o diretor, o assistente de direção, o diretor de fotografia, o roteirista, o produtor, os patrocinadores (o diretor executivo), os atores, etc. Mas, conseguimos identificar filmes autorais como os de Glauber Rocha, Fellini, Buñuel, Chaplin, Zé do Caixão. Ou, identificar filmes de culturas diferente, como os iranianos, argentinos, americanos, brasileiros. E dentro deste universo do cinema -arte, existem filmes que se auto-retratam, que elogiam a própria arte.

São muitos os filmes que retratam o próprio cinema. Lembro de “Salve o Cinema”(1995) de Mohsen Makhmalbaf, filme iraniano, que narra uma seleção de atrizes/ atores para um novo filme. O próprio Makhmalbaf entrevista os candidatos e extraí a diversidade dos problemas humanos, o fascínio e as experiências que o cinema representa na vida dessas pessoas. Outro filme é “Noite Americana” de François Truffaut (1973), de nacionalidade francesa, é os bastidores de um filme fictício. Mostra os problemas e imprevistos de uma produção cinematográfica. É belíssimo, uma poesia. Agora, o último filme que assisti, que se chama “Retratos Fantasmas”(2023), do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, fez acender minhas memórias dos tempos que eu me tornei um cinéfilo, da minha paixão vivida pelo cinema.

Este filme documentário tem tudo o que um amante da sétima arte pode se identificar. O filme versa sobre o que significa o cinema para este diretor. Assim, começa retratando a cidade histórica do Recife através da fotografia: do urbanismo de tempos atrás (mostrando o centro da cidade com seus diversos cinemas, e um urbanismo social voltado para a ocupação deste centro, já existindo espaços de segregação de classes sociais), e o momento atual (uma Recife cheia de prédios altos e cinemas que viraram igrejas evangélicas, mostrando o poder mercantilista dos tempos atuais). É sempre curioso ver as transformações das cidades, pois elas estão em constante movimento que, para o próprio morador, pode parecer imperceptível. Kleber abre o filme elogiando a Fotografia que é a essência do cinema. Num segundo momento, o diretor retrata a sua veia artística para a sétima arte, quando era um garoto amador neste ofício. Ele nos conta que o seu apartamento se tornou um setting de filmagens para suas dezenas de filmes experimentais realizados com seus amigos e vizinhos. Trouxe a nostalgia da sua infância, da perda da sua mãe às reformas da sua casa.

O diretor traz a simbologia do Corpo, de como o cinema foi dominando a sua vida e tomando corpo ao que ele é hoje, um cineasta profissional. No terceiro momento, ele nos apresenta a semiótica dos letreiros, dos nomes dos filmes estampados nas marquises das salas de cinemas. Aborda a publicidade dos filmes, os empresários do ramo e o trabalhador projecionista. Faz uma fenomenologia, parecido com um devaneio, sobre como essas marcas tem nos capturados, criando uma narrativa publicitária  que se comunica com a mensagem do filme. Na quarta parte, ele mostra a arquitetura dos cinemas que se transformaram em igrejas evangélicas, mostrando o sentido de templo que no cinema existe, onde a religião é a Arte.

O final traz uma cena nostálgica que mostra o quanto o cinema está imerso na cultura através da telenovela, da indústria de massa. Não dá pra saber se isto é bom ou é ruim, é relativo. Assim como no filme de Makhamalbaf, este não está interessado em saber quem é bom ou ruim ator. O que interessa é o que o ser-humano vai fazer com essas coisas. E aí eu questiono você, meu nobre leitor. Como construir uma narrativa que liberta, que seja genuinamente nossa, que não esteja atrelado ao imperialismo norte- americano ou ao pensamento dominante, uma narrativa que não nos coloque como meros consumidores e espectadores de nossa cultura, onde não caímos na armadilha de que a  cultura do ‘primeiro mundo” é algo melhor. A nostalgia do Kleber representa um cansaço não com as pessoas, mas com esta máquina de fabricar ideologias, que a todo momento, 24 horas por dia, move suas engrenagens para fabricar somente um diálogo: a da dominação cultural pelos os mais ricos e poderosos. A comunicação é um dos tentáculos do Poder.

Você que é cinéfilo, que gosta de assistir séries ou filmes na Netflix, tem que viver a experiência de produzir um filme. Nem vou falar que há tempos atrás havia muita dificuldade, custava caro uma câmera, e pouca gente possuia. Hoje, existe o celular que é uma câmera cinematográfica. E deve ser fácil encontrar um aplicativo de edição de imagens e sons. Antigamente, se dizia: “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. Agora, todos temos uma câmera na mão, é só juntar os amigos. Fazer um filme é atuar no mundo, é testar sua criatividade, é apontar a sua crítica para as coisas estabelecidas, normalizadas, engessadas. Você vai perceber que a nossa vida não é tão bem representada pelas novelas, que há muito estigma e preconceito, e uma moral da história da qual não nos identificamos. É libertador saber que podemos passar a nossa mensagem via arte. O jovem precisa perceber também, que certos vídeo do Tik Tok é extremamente empobrecedor e que gera uma compulsão por olhar, um aprisionamento da percepção, a pessoa fica como um zumbi diante da tela. O jovem pode fazer cinema, mudar a maneira de olhar o seu mundo.

Eu fiz um filme chamado “A Espiral” com meus três amigos, André Arnaut, Rafael Zanon e Álvaro Alvim. Para criar tudo é possível, mas esbarramos com os diversos obstáculos que parecem intransponíveis. Sonhar é prazeroso, realizar é um êxtase e projetar o filme na mente, escrevendo um roteiro, pode ser tão mais rico do que concretizar. Ou seja, continue sonhando! Não precisamos medir as coisas somente pela régua do resultado. Esta arte da projeção dá ânimo a nossa existência. Ao implicar a nossa vida numa narrativa de sons e imagens, verás que a nossa realidade é de quem vive as contradições de uma vida difícil e sofrida do que aquelas que costuma passar nas novelas, programas de TV ou filmes de Hollywood. Só sendo atores de nossa produção é que perceberemos o quanto somos manipulados e reduzidos a fantoches do consumo. Quando nós percebemos a força que temos, coletivamente, poderemos fazer o que um diretor faz quando quer interromper uma cena: Corta!